Caçador- Santa Catarina - Portal CDR - contato@portalcdr.com.br

Encontre no site:
Márcio Roberto Goes

O professor maluco

09/10/2023

Imprimir

O professor maluco



    No dia de sua formatura, o professor maluco ergueu os braços para o céu, agradecendo a Deus por aquela conquista e ajoelhou-se no palco do auditório da universidade... Emocionou... As luzes todas foram acesas para focalizar com maior clareza aquela cena descomunal. Sua mãe, na plateia chorava emocionada. Seus amigos o felicitaram depois pela atitude emocionante e corajosa... Estava feliz, irradiava felicidade por onde passava... As pessoas percebiam o brilho no seu olhar, próprio de quem fez a escolha certa, se orgulha por poder exercer a melhor e mais maravilhosa profissão do mundo: Professor... Finalmente poderia incluir mais quatro letras antes de seu nome: PROF... Seria agora um profissional de verdade, habilitado para a função como nunca, apesar de, desde a primeira fase atuar como professor em algumas escolas que o fizeram amar a educação pública e lutar por ela...

    As coisas, de vagarinho, iam melhorando na vida daquele sonhador... Venceu tudo isso antes de receber aquele diploma inacreditável para muitos do seu convívio... Muitos o desanimavam, porém, muitos outros acreditavam piamente nas qualidades que o levariam ao sucesso em breve... Para os desanimadores de plantão, não era possível uma burrice tamanha a ponto de se investir numa graduação sabendo que não teria o retorno financeiro merecido pelo esforço desprendido...

    Mas o professor maluco não pensava na questão financeira, aliás, nenhum maluco pensa. Ele queria ser protagonista da própria história e ajudar seus alunos também a serem. Acreditava que poderia mudar a escola, a comunidade, o município, a nação e muito mais, partindo da sua sala de aula.... Prometera a si mesmo ser no mínimo, amigo de seus alunos... E conseguiu: Vivia rodeado de estudantes, todos queriam se aproximar para acompanhá-lo até a sala, disputavam entre si quem carregaria sua pasta. Como diz Ruben Alves, “Por amor, os alunos carregam até a pasta pesada do professor”... Além de tudo, o professorzinho maluco repartia, de igual para igual com seus alunos, esperanças, temores, conhecimentos. Trocava confidências, aconselhava e era aconselhado... Suas aulas eram esperadas ansiosamente.

    A teoria só aparecia quando necessário, tudo o mais era prática... Ninguém aprendia só por aprender, sempre existia uma motivação e uma aplicabilidade para aquele conhecimento... Muitos e muitos alunos passaram pela sua vida, aprenderam a querer escrever e escreviam com emoção, colocavam o coração no papel... Com ele, os alunos do ensino médio reaprenderam a abraçar, a ser solícitos, a gostar de contar o que liam, a querer apagar o quadro e carregar a pasta, declamar poesias e ler, com orgulho, suas produções... 

    Como era maluco aquele professor! Distribuía abraços descarada e generosamente pelos corredores... Muitas vezes parecia matar aula, mas quando seus queridos alunos percebiam, estavam trocando ideias, discutindo e escrevendo sobre aquilo que conversaram quando pensavam que não faziam nada... Muitas vezes, de tão maluco que era, ele pedia para seus amados estudantes produzirem um texto, qualquer texto, qualquer gênero, qualquer número de linhas, sobre qualquer coisa, com duas condições: Não valeria nota e deveriam escrever com o coração. Todos faziam... E todos sabiam que, de qualquer forma seriam avaliados...

    Um dia, o professor maluco foi duramente questionado... Não se importava com isso, até gostava, pois acreditava ser a discussão uma importante forma de seus alunos crescerem na vontade de se aprimorar e argumentar cada vez com mais convicção sobre o assunto proposto... Mas o questionamento não era dos alunos e sim de seus superiores... Houve denúncias. Ele não sabia dar aulas, não trabalhava direito, não ensinava nada de útil, não preparava os educandos para os vestibulares e as provas teóricas da vida de quem se baseia só nos números... Os números ainda não foram humanizados, os humanos é que foram emplacados e numerados por outros seres humanos que se julgam, sabe-se lá baseados em quê, perfeitos... Foi responsabilizado pela pseudo-burrice dos seus ex-alunos desconhecedores das regras que deveriam ser ensinadas por ele no ensino médio...

    Naquele dia, o sorriso do professor maluco inverteu-se... Poxa vida! Ele recebia alunos semianalfabetos e, nem por isso, responsabilizava os professores anteriores. Arregaçava as mangas e tentava recuperar o tempo perdido. Inúmeras vezes conseguia grandes avanços, mas só era lembrado quando não o fazia... E o brilho do professor maluco, aos poucos foi se apagando. E foi se afastando de seus ideais. E foi querendo cada vez menos transformar a sociedade através das aulas. E foi murchando... Andava cabisbaixo pelos corredores. Sofria ameaças... Paranoico, pensava que todos estavam contra ele... Não sentia mais vontade de estar ali com seus alunos, abraçava menos, não aconselhava, nem era aconselhado, não sorria, nem arrancava sorrisos... Estava apático... Morria, aos poucos para dar lugar a uma pessoa arrogante, de mal com a vida, intransigente e de pouquíssimos sorrisos...

    Todos notaram a mudança e ninguém gostou. Pobre professor maluco! Havia ajudado tantas vidas e deixava a sua se perder por causa de interesses mesquinhos de alguns “pesos mortos” que não viam a hora de tê-lo em seu grupo de desmotivadores de plantão... E então o professor maluco percebeu-se no caminho errado. Encheu o quadro e o caderno de seus alunos de teorias e mais teorias...

    No ápice de sua desordem moral, o professor maluco se debruçou em sua mesa e, ali mesmo, deixou a dor da ingratidão e da injustiça corroerem sua alma e escorrerem pelos olhos... Ele então chorou... Chorou para não ferir ninguém, condenou-se para não condenar ninguém, calou-se para não calar ninguém... Já não tinha forças para lutar nem sorrir despreocupadamente. Já não via motivos para cultivar a amizade pelos alunos, visto que o fato de serem amigos não estava surtindo o efeito esperado por aqueles que sentam na cadeira de quem pensa que manda...

    Enquanto soluçava sua dor doída  pelo transpasso do punhal da intolerância, sentiu uma mão carinhosa em seu ombro... Por um momento estranhou, era hora-atividade, não haveria de ter ninguém além dele naquele recinto... Levantou lentamente a cabeça e viu, com os olhos embaçados pelas lágimas, dois alunos. Um deles, o que estava com a mão em seu ombro, lhe disse:

        ◦ Professor, há dias que quero lhe dizer uma coisa, mas não achava jeito: Já faz dois anos que sonho em ser seu aluno... Antigamente observava você nos corredores da escola, rodeado de gente e pensava: Não vejo a hora de chegar no ensino médio e estar lá no meio daqueles alunos. Conviver com aquele professor tão querido por todos. Agora aqui estou e me sinto muito feliz por isso. Você é mais do que um professor, é um amigo para todas as horas. Sinto muito orgulho em ser seu aluno...

    O professor maluco levantou-se e caprichou no abraço, daqueles compartilhados só pelos melhores amigos: Bem apertado, sem preconceito, sem medo... O choro agora era de alegria e ambos deixavam a emoção tomar conta daquela sala de aula que, em breve, estaria novamente cheia de alunos sedentos por conhecimento e curiosos para ver qual seria a nova dinâmica que os faria ler, analisar e produzir mais um texto...

    Naquele dia, o professor maluco ressuscitou.  Voltou ainda mais forte, mais destemido e com a certeza de que sempre esteve no caminho certo. Não esqueceu, porém, que é um ser humano e, como tal, passível de erros. O importante é manter o sorriso e o coração aberto a novas emoções que, facilmente se transformam em obras literárias dele e de seus sempre amados alunos...

    Desde então, o professor mais maluco que nunca, resolveu aprimorar sua maluquez e usá-la para o bem da educação pública, sem medo de ser feliz e fazer felizes as pessoas ao seu redor. E percebeu que, na verdade, malucos são aqueles que pregam uma educação de vitrine, cheia de conceitos e regras que só fazem o ser humano se tornar mais dependente dos supostos superiores. Criam padrões que transformam os seres humanos em produtos alienados e obrigados a colocar o cérebro numa forma para serem moldados todos iguais, sem questionamento, sem discussão, sem revolução, sem emoção... Enfim, malucos são aqueles que acham que nossos alunos devem aprender os conceitos prontos daqueles que esperam rendimentos e potencialidades iguais de pessoas diferentes... 

    Daí o maluco sou eu?



Márcio Roberto Goes

Professor, escritor e meio louco (Graças a Deus)...



 



 



 

Veja as postagens anteriores

Divulgue esta coluna

Coluna retirada do Portal CDR - WWW.PORTALCDR.COM.BR

WWW.PORTALCDR.COM.BR | CONTATO@PORTALCDR.COM.BR