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Em outras palavras, o filme descreve o desencadeamento fático, ou seja real, a partir do qual se construiu a dimensão mítica. O arcabouço ideológico-religioso-mitológico que revestiu as ocorrências. Quiçá o próprio Homero seja a lenda que se elaborou a partir de diversos outros poetas construtores da “Ilíada”. Em suma, o filme relata a epopéia a partir do real, frisando que a crença na ingerência mítica constitui criação dos protagonistas, ao contrário do poema, que relata o miraculoso com o “status” de factual.
A partir desta premissa se compreende que o filme não siga o roteiro do poema, inclusive quanto ao desenrolar temporal, visto que naquele os fatos não estão cônsono como a temporalidade daquele. Também o filme engloba todos os episódios pertinentes ao poema, sem que, necessariamente, constem do poema. O estratagema do uso do cavalo, maquinado pelo astucioso Ulisses constitui exemplo eloquente desta assertiva, visto que não consta do original. O filme se constitui de tudo que diz respeito à obra e não apenas de seu texto original.
Destarte, eis uma riqueza do filme a “Ilíada” que faz jus a realce - na cultura ocidental, ela não se compõe apenas dos versos originais, mas de todo o acréscimo que lhe foi, conscientemente ou não, incorporado. Aqui, faz-se mister trazer à colação o magistério da Profª Adair, de acordo a qual o estratagema, em última análise, consta da “Eneida”, da lavra de Virgílio, dada a lume muitos século após a versão original”. Ocorre que uma tradução, seja lingüística ou fílmica, sempre se constitui em uma outra versão, nunca a obra original.
Por fim, o trecho do conflito entre Aquiles, o mais eficaz guerreiro grego, e Agamenon, comandante da Confederação Helênica, por uma mulher (poderia ser por outro motivo?...) demonstra a disparidade essencial entre ambas as obras da “Ilíada” – o poema original e o filme fica patente, quando no original consta o sonho falaz de Agamenon, em consonância com o qual poderia vencer sem Aquiles, não consta do filme. Em suma, no filme os homens são movidos por sentimentos próprios, utilizando as deidades como justificação ideológica, ao passo que no poema as deidades de fato interferem e condicionam as ações humanas.
Bem, encerro aqui, porquanto a humanidade vem estudando o poema há milênios e apenas deslindou a casca de sua riqueza. Poderíamos redigir o resto da vida e ainda sequer deslindaríamos um verso da “Ilíada”. No entanto, à guisa de conclusão, vale reiterar que não se compreende a cultura ocidental e sua matriz ideológica sem a perquirição desta obra.
Abraço a todos e todas que estão engajas nesta verdadeira “epopéia” de analisar esta obra. Meu estímulo derradeiro a todos e todas, consubstanciado no verso de Fernando Pessoa, consonantemente com o qual “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. E sem tratando da “Ilíada”, com certeza, vale a pena.